Pulp
Fiction é um dos
filmes mais importantes da década de 90 e um divisor de águas para as produções
seguintes. Seguindo a mesma linha revolucionária de Cidadão Kane e Laranja Mecânica, que também não ganharam prêmios expressivos e são considerados
clássicos do cinema mundial, Pulp Fiction
perdeu a disputa de melhor filme para Forrest Gump. O filme de Tarantino corrompe a cegueira em que vivemos e explode o
mundo de maravilhas estampado nas paredes da toca de um coelho atrasado como
nossa própria vida.
A ideia
original de Pulp Fiction surgiu da
parceria de Quentin Tarantino e Roger Avary. Com a intenção de produzir um
curta escreveram três histórias, a de Tarantino se expandiu para Cães de Aluguel, seu primeiro filme e a
de Avary se transformou em “O Relógio de Ouro”, que é uma das histórias mais
inusitadas de Pulp Fiction. Butch
Coolidge herda um relógio de ouro de seu pai de uma forma nada convencional.
Vivido por Bruce Willis, Butch é um boxeador, aparentemente derrotado, que é
pago por Marsellus Wallace (Ving Rhames) para perder uma luta, mas resolve
vencê-la. Aqui começa uma caçada um tanto quanto inusitada e com um desfecho
inimaginável.
O roteiro de Pulp Fiction é apresentado em narrativa não-linear, sua estrutura é
dividida em sete histórias que se unem por alguns elementos e são vistas de
perspectivas diferentes. Antes da primeira cena somos apresentados ao
significado de Pulp: algo úmido;
matéria disforme; histórias sensacionalistas escritas em papel barato. O título
também faz referência às revistas Pulp, populares em meados do século XX, com
temática violenta e diálogos ricos.
A primeira cena escancara a força do
roteiro de Tarantino, premiado com o Oscar de melhor roteiro original.
Presenciamos o casal Pumpkin (Tim Roth) e Honey Bunny (Amanda Plummer)
analisando de forma filosófica e com visão administrativa as vantagens e
desvantagens de se roubar bancos na atual conjuntura política dos Estados
Unidos. Um diálogo simples que mostra de forma genial a grande sacada empreendedora
ironicamente criminosa, o que faz lembrar muito o roteiro de Cães de Aluguel. A cena é cortada para
os créditos com a ótima versão de Misirlou
feita por Dick Dale & The Del-Tones.
Pumpkin e Honey Bunny |
Em seguida somos apresentados à dupla
Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) e Vincent Vega (John Travolta), dois
assassinos profissionais que trabalham para Marsellus Wallace, um dos chefões
do crime organizado, em outro diálogo repleto de citações e carregado de
significado filosófico que gira em torno da experiência de Vega na Holanda e as
diferenças culturais entre o Velho e Novo Mundo, em Amsterdam a cerveja é
servida nos cinemas em canecas, demonstrando que existe diferença entre a “liberdade”,
mesmo em países contemporâneos, e que ela é produto do meio em que é
introduzida e não possui valor ou significado ordinários, é definida de acordo
com a cultura e influências externas de uma sociedade.
John Travolta teve sua carreira
revitalizada após o sucesso de Vincent Vega, recebeu uma indicação ao Oscar e
protagonizou uma das cenas mais emblemáticas da história do cinema. Uma Thurman
interpreta Mia Wallace, esposa de Marsellus, Vega recebe a missão de cuidar
dela por uma noite na ausência do patrão. Após saírem para se divertir no bar
temático Jack Rabbit Slim’s, que
possui ambiente típico de bares dos anos 50, músicas de sucesso dos anos 60 e a
clássica dança entre Thurman e Travolta nos leva à época de ouro dos embalos de
sábado à noite e homenageia a década de 70 com a nostálgica volta de Travolta
aos palcos. Sentados um de frente para o outro como conhecidos no início da
descoberta dos sentimentos entre si evitando proximidade para não perderem o
controle da situação. O diálogo mais espetacular do filme se opõe a si mesmo em
forma de silêncio que é interrompido com o questionamento de Mia: por que temos
que falar idiotices para nos sentirmos a vontade? Seguido da afirmação: é assim
que sabemos que encontramos alguém especial, quando podemos nos calar e ainda
assim ficarmos a vontade.
Embalos de Pulp Fiction |
Ao retornarem
para a casa de Marsellus Mia coloca a canção Girl, You’ll Be a Woman Soon, cover de Urge Overkill para a música
de Neil Diamond, Vincent vai ao banheiro e Mia encontra heroína em seu bolso. Enquanto
Vega luta contra si e tenta se convencer a apenas ir embora sem ir “longe
demais” com a mulher do chefe, Mia cheira a heroína pensando ser cocaína
completamente alheia ao mundo a seu redor e ao mesmo tempo submissa a ele.
Buscando nas drogas um escape para seu dilema existencial: sempre sonhou em ter
todos os bens materiais que pudesse imaginar, mas agora que os possui percebe o
vazio que objetos inanimados representam, sem poder desfazer a situação em que
se encontra busca uma distração, entorpece sua mente imaginando que irá acordar
em outro lugar, em outra época e que tudo não passa de um de seus sonhos de
infância. Nesse instante ela tem uma overdose, Vincent sai do banheiro e busca
auxílio na casa de Lance (Eric Stoltz).
Marsellus Wallace |
O próprio
Tarantino queria representar Lance, mas ao mesmo tempo quis estar atrás das
câmeras e filmar a cena clássica a sua maneira, o papel também foi oferecido ao
vocalista do Nirvana, Kurt Cobain, motivo pelo qual ele incluiu o nome do
diretor nos agradecimentos do álbum In Utero.
Na casa de Lance Travolta recebe uma seringa com adrenalina para aplicar em
Mia, ele a injeta de uma só vez e ressuscita a personagem de Thurman, está
realizada uma das cenas mais emblemáticas da história do cinema. Uma Thurman
também foi indicada ao Oscar na categoria de melhor atriz coadjuvante por sua
performance em Pulp Fiction.
Cena da aplicação de adrenalina, Eric Stoltz ao estilo de Kurt Cobain |
Criou-se um
mito com o personagem de Vega, o banheiro tem um papel importante em Pulp Fiction, e em três ocasiões
Travolta se vê na eminência da morte após sair dele, como se deixasse sua vida
fora dos trilhos ao sair do mundo e perdesse o controle sobre ele. Além do
ocorrido com Mia, na última cena em que está em uma lanchonete com Jules, após
o incidente que propiciou a eles a oportunidade de conhecerem a lenda Winston
Wolf, o “limpador”, vivido por Harvey Keitel Vincent vai ao banheiro e quando
retorna Jules está em um dilema com Pumpkin, na continuação da cena de prólogo que
funciona como epílogo e vista sob outra perspectiva, Jules está apontando a
arma para Pumpkin e Honey Bunny apontando pra ele que neste instante vira alvo
da mira de Vincent. O outro momento em que Travolta se vê diante da morte é a
cena em que está de tocaia na casa do boxeador Butch Coolidge, quando Vega sai
do banheiro Butch atira e o mata.
Samuel L.
Jackson, com sua costumeira e brilhante interpretação no papel de Jules
Winnfield, recebeu uma indicação ao Oscar e recita uma das falas que foi eleita
em 2004 como uma das mais emblemáticas da história do cinema ficando em quarto
lugar. O trecho recitado pertence à Bíblia, Ezequiel 25:17, mas foi reescrito
por ele e Tarantino e não foi mantido quase nada do trecho original. A citação
soa como epitáfio por ser dita antes de suas execuções e justifica a morte
insinuando que a vítima não seria um homem justo e a justiça de Deus se fará
sobre ele de forma vingativa e fatal.
Além de
receber vários prêmios e ser indicado como o melhor filme da década de 90 e
estar presente na lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos, Pulp Fiction possui características semelhantes
às tragédias shakespearianas. Personalidades distintas e singulares para cada
personagem com detalhes fascinantes. Muitos diálogos e situações não possuem
ligação direta com a trama, o que gerou algumas críticas, e é exatamente o que
caracteriza a peculiaridade psicológica e comportamental dos personagens e
aproxima o roteiro do caráter cotidiano, o velho bardo sabia como ninguém dar
vida às suas obras e criar perfis únicos e próximos da realidade, qualidade
demonstrada por Tarantino em todos os seus trabalhos.
Keitel e Tarantino |
A campanha de
marketing realizada pela Miramax para Pulp
Fiction gera um paradoxo que representa a estreita brecha entre ficção e
realidade que rendeu ao diretor e roteirista a reputação de dar glamour a
violência. Um dos slogans dizia: Você não
vai conhecer os fatos até conhecer a ficção. Podemos traçar um paralelo
entre Pulp Fiction e Forrest Gump. Nenhum dos dois se apoia
totalmente na realidade, o último se utiliza da linguagem Kitsch, de como as coisas deveriam ser e como acreditamos que elas
sejam, o primeiro nos mostra um mundo no qual a realidade é dolorosa e ao mesmo
tempo divertida. Se a realidade só é compreendida através da ficção, a ficção é
a realidade e deixa de ser real tornando-se ficção. A ironia presente nessa
ideia sugere que o mundo possa estar de cabeça para baixo enquanto erguemos
nossos arranha-céus e olhamos para cima em busca de alguma divindade. E como
disse no início do texto, talvez ainda vivamos na Idade Média, não à espera de
um Messias, mas sim de um Galileu que nos mostre nosso lugar no mundo.
O paralelo
perfeito entre Forrest Gump e Pulp Fiction se resume a dois movimentos
que se opuseram no século XIX, enquanto o romantismo de Forrest Gump exagera os sentimentos idealizados e os reproduz com
subjetividade o realismo de Pulp Fiction
mostra as coisas como elas são verdadeiramente e encara os problemas sociais
com linguagem atual. O romantismo tem na mulher sua musa, sua razão de viver e
a descreve com perfeição divina, é o caso de Forrest e Jenny. O realismo vê a
mulher como objeto de desejo, sedução, Vincent e Mia.
Tarantino nos mostra de forma sucinta
como atos de violência se tornaram acontecimentos banais e são
profissionalizados e aplaudidos por uma plateia que não se embriaga com o Kitsch moderno e representa a lucidez da
realidade escondida em forma de sombras reluzidas na parede da caverna social
em que vivemos.
Confira o trailer:
Pulp Fiction é uma espécie de sódio que nos mantem
com sede bebendo uma Coca-Cola, que
nos mantem com fome comendo um Ruffles,
no fundo sabemos que o sódio nos faz mal, mas o gosto é irresistível e é
impossível assistir uma vez só.
E que o
cinema esteja com vocês!
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