1 de maio de 2013

Pulp Fiction (1994)


Pulp Fiction é um dos filmes mais importantes da década de 90 e um divisor de águas para as produções seguintes. Seguindo a mesma linha revolucionária de Cidadão Kane e Laranja Mecânica, que também não ganharam prêmios expressivos e são considerados clássicos do cinema mundial, Pulp Fiction perdeu a disputa de melhor filme para Forrest Gump. O filme de Tarantino corrompe a cegueira em que vivemos e explode o mundo de maravilhas estampado nas paredes da toca de um coelho atrasado como nossa própria vida.

A ideia original de Pulp Fiction surgiu da parceria de Quentin Tarantino e Roger Avary. Com a intenção de produzir um curta escreveram três histórias, a de Tarantino se expandiu para Cães de Aluguel, seu primeiro filme e a de Avary se transformou em “O Relógio de Ouro”, que é uma das histórias mais inusitadas de Pulp Fiction. Butch Coolidge herda um relógio de ouro de seu pai de uma forma nada convencional. Vivido por Bruce Willis, Butch é um boxeador, aparentemente derrotado, que é pago por Marsellus Wallace (Ving Rhames) para perder uma luta, mas resolve vencê-la. Aqui começa uma caçada um tanto quanto inusitada e com um desfecho inimaginável.


O roteiro de Pulp Fiction é apresentado em narrativa não-linear, sua estrutura é dividida em sete histórias que se unem por alguns elementos e são vistas de perspectivas diferentes. Antes da primeira cena somos apresentados ao significado de Pulp: algo úmido; matéria disforme; histórias sensacionalistas escritas em papel barato. O título também faz referência às revistas Pulp, populares em meados do século XX, com temática violenta e diálogos ricos.
A primeira cena escancara a força do roteiro de Tarantino, premiado com o Oscar de melhor roteiro original. Presenciamos o casal Pumpkin (Tim Roth) e Honey Bunny (Amanda Plummer) analisando de forma filosófica e com visão administrativa as vantagens e desvantagens de se roubar bancos na atual conjuntura política dos Estados Unidos. Um diálogo simples que mostra de forma genial a grande sacada empreendedora ironicamente criminosa, o que faz lembrar muito o roteiro de Cães de Aluguel. A cena é cortada para os créditos com a ótima versão de Misirlou feita por Dick Dale & The Del-Tones.

Pumpkin e Honey Bunny
Em seguida somos apresentados à dupla Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) e Vincent Vega (John Travolta), dois assassinos profissionais que trabalham para Marsellus Wallace, um dos chefões do crime organizado, em outro diálogo repleto de citações e carregado de significado filosófico que gira em torno da experiência de Vega na Holanda e as diferenças culturais entre o Velho e Novo Mundo, em Amsterdam a cerveja é servida nos cinemas em canecas, demonstrando que existe diferença entre a “liberdade”, mesmo em países contemporâneos, e que ela é produto do meio em que é introduzida e não possui valor ou significado ordinários, é definida de acordo com a cultura e influências externas de uma sociedade.

Vincent e Jules
John Travolta teve sua carreira revitalizada após o sucesso de Vincent Vega, recebeu uma indicação ao Oscar e protagonizou uma das cenas mais emblemáticas da história do cinema. Uma Thurman interpreta Mia Wallace, esposa de Marsellus, Vega recebe a missão de cuidar dela por uma noite na ausência do patrão. Após saírem para se divertir no bar temático Jack Rabbit Slim’s, que possui ambiente típico de bares dos anos 50, músicas de sucesso dos anos 60 e a clássica dança entre Thurman e Travolta nos leva à época de ouro dos embalos de sábado à noite e homenageia a década de 70 com a nostálgica volta de Travolta aos palcos. Sentados um de frente para o outro como conhecidos no início da descoberta dos sentimentos entre si evitando proximidade para não perderem o controle da situação. O diálogo mais espetacular do filme se opõe a si mesmo em forma de silêncio que é interrompido com o questionamento de Mia: por que temos que falar idiotices para nos sentirmos a vontade? Seguido da afirmação: é assim que sabemos que encontramos alguém especial, quando podemos nos calar e ainda assim ficarmos a vontade.

Embalos de Pulp Fiction
Ao retornarem para a casa de Marsellus Mia coloca a canção Girl, You’ll Be a Woman Soon, cover de Urge Overkill para a música de Neil Diamond, Vincent vai ao banheiro e Mia encontra heroína em seu bolso. Enquanto Vega luta contra si e tenta se convencer a apenas ir embora sem ir “longe demais” com a mulher do chefe, Mia cheira a heroína pensando ser cocaína completamente alheia ao mundo a seu redor e ao mesmo tempo submissa a ele. Buscando nas drogas um escape para seu dilema existencial: sempre sonhou em ter todos os bens materiais que pudesse imaginar, mas agora que os possui percebe o vazio que objetos inanimados representam, sem poder desfazer a situação em que se encontra busca uma distração, entorpece sua mente imaginando que irá acordar em outro lugar, em outra época e que tudo não passa de um de seus sonhos de infância. Nesse instante ela tem uma overdose, Vincent sai do banheiro e busca auxílio na casa de Lance (Eric Stoltz).

Marsellus Wallace
O próprio Tarantino queria representar Lance, mas ao mesmo tempo quis estar atrás das câmeras e filmar a cena clássica a sua maneira, o papel também foi oferecido ao vocalista do Nirvana, Kurt Cobain, motivo pelo qual ele incluiu o nome do diretor nos agradecimentos do álbum In Utero. Na casa de Lance Travolta recebe uma seringa com adrenalina para aplicar em Mia, ele a injeta de uma só vez e ressuscita a personagem de Thurman, está realizada uma das cenas mais emblemáticas da história do cinema. Uma Thurman também foi indicada ao Oscar na categoria de melhor atriz coadjuvante por sua performance em Pulp Fiction.

Cena da aplicação de adrenalina, Eric Stoltz ao estilo de Kurt Cobain
Criou-se um mito com o personagem de Vega, o banheiro tem um papel importante em Pulp Fiction, e em três ocasiões Travolta se vê na eminência da morte após sair dele, como se deixasse sua vida fora dos trilhos ao sair do mundo e perdesse o controle sobre ele. Além do ocorrido com Mia, na última cena em que está em uma lanchonete com Jules, após o incidente que propiciou a eles a oportunidade de conhecerem a lenda Winston Wolf, o “limpador”, vivido por Harvey Keitel Vincent vai ao banheiro e quando retorna Jules está em um dilema com Pumpkin, na continuação da cena de prólogo que funciona como epílogo e vista sob outra perspectiva, Jules está apontando a arma para Pumpkin e Honey Bunny apontando pra ele que neste instante vira alvo da mira de Vincent. O outro momento em que Travolta se vê diante da morte é a cena em que está de tocaia na casa do boxeador Butch Coolidge, quando Vega sai do banheiro Butch atira e o mata.

Samuel L. Jackson, com sua costumeira e brilhante interpretação no papel de Jules Winnfield, recebeu uma indicação ao Oscar e recita uma das falas que foi eleita em 2004 como uma das mais emblemáticas da história do cinema ficando em quarto lugar. O trecho recitado pertence à Bíblia, Ezequiel 25:17, mas foi reescrito por ele e Tarantino e não foi mantido quase nada do trecho original. A citação soa como epitáfio por ser dita antes de suas execuções e justifica a morte insinuando que a vítima não seria um homem justo e a justiça de Deus se fará sobre ele de forma vingativa e fatal.

Além de receber vários prêmios e ser indicado como o melhor filme da década de 90 e estar presente na lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos, Pulp Fiction possui características semelhantes às tragédias shakespearianas. Personalidades distintas e singulares para cada personagem com detalhes fascinantes. Muitos diálogos e situações não possuem ligação direta com a trama, o que gerou algumas críticas, e é exatamente o que caracteriza a peculiaridade psicológica e comportamental dos personagens e aproxima o roteiro do caráter cotidiano, o velho bardo sabia como ninguém dar vida às suas obras e criar perfis únicos e próximos da realidade, qualidade demonstrada por Tarantino em todos os seus trabalhos.

Keitel e Tarantino
A campanha de marketing realizada pela Miramax para Pulp Fiction gera um paradoxo que representa a estreita brecha entre ficção e realidade que rendeu ao diretor e roteirista a reputação de dar glamour a violência. Um dos slogans dizia: Você não vai conhecer os fatos até conhecer a ficção. Podemos traçar um paralelo entre Pulp Fiction e Forrest Gump. Nenhum dos dois se apoia totalmente na realidade, o último se utiliza da linguagem Kitsch, de como as coisas deveriam ser e como acreditamos que elas sejam, o primeiro nos mostra um mundo no qual a realidade é dolorosa e ao mesmo tempo divertida. Se a realidade só é compreendida através da ficção, a ficção é a realidade e deixa de ser real tornando-se ficção. A ironia presente nessa ideia sugere que o mundo possa estar de cabeça para baixo enquanto erguemos nossos arranha-céus e olhamos para cima em busca de alguma divindade. E como disse no início do texto, talvez ainda vivamos na Idade Média, não à espera de um Messias, mas sim de um Galileu que nos mostre nosso lugar no mundo.

O paralelo perfeito entre Forrest Gump e Pulp Fiction se resume a dois movimentos que se opuseram no século XIX, enquanto o romantismo de Forrest Gump exagera os sentimentos idealizados e os reproduz com subjetividade o realismo de Pulp Fiction mostra as coisas como elas são verdadeiramente e encara os problemas sociais com linguagem atual. O romantismo tem na mulher sua musa, sua razão de viver e a descreve com perfeição divina, é o caso de Forrest e Jenny. O realismo vê a mulher como objeto de desejo, sedução, Vincent e Mia.

Tarantino nos mostra de forma sucinta como atos de violência se tornaram acontecimentos banais e são profissionalizados e aplaudidos por uma plateia que não se embriaga com o Kitsch moderno e representa a lucidez da realidade escondida em forma de sombras reluzidas na parede da caverna social em que vivemos.

Confira o trailer:

Pulp Fiction é uma espécie de sódio que nos mantem com sede bebendo uma Coca-Cola, que nos mantem com fome comendo um Ruffles, no fundo sabemos que o sódio nos faz mal, mas o gosto é irresistível e é impossível assistir uma vez só.

E que o cinema esteja com vocês!

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